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domingo, maio 03, 2009

ARGEMIRO FERREIRA

Guantánamo, uma indecência de 110 anos

Por enquanto, só o que o governo do presidente Barack Obama ousou dizer sobre a baía de Guantánamo, extensa área do território cubano sob controle indecente dos EUA há 110 anos, foi a referência à mudança do status que lhe dera o antecessor George W. Bush, ao transformá-la em prisão infame e centro de tortura, chamada há três anos pela Anistia Internacional de "Gulag do nosso tempo".

Em cumprimento a promessas de campanha, Obama decidiu pela proibição da tortura e pelo fechamento da prisão - como também das demais prisões secretas da CIA (Agência Central de Espionagem) espalhadas pelo mundo, nas quais se terceirizava a prática da tortura. Mas Guantánamo é ainda uma indecência jurídica e uma relíquia colonial do império sonhado pelos EUA no século 19.

Ocupada pela força das armas, Guantánamo já então era intolerável. Ainda o é hoje. Os próprios americanos, por uma questão de dignidade e bom senso, há muito deviam tê-la devolvido como excrescência ofensiva não só ao povo cubano, cuja liberdade os EUA alegam defender, mas a toda a América Latina - já que impingida a partir de lei americana doméstica e abusiva, que tratava de destinação de verbas do Exército.

De olho em Cuba, desde 1824

A ocupação de Guantánamo data de 1898. Resultou de pacote intervencionista em meio à luta dos cubanos pela independência da Espanha, então potência colonial. Concebida em 1823, a Doutrina Monroe ("a América para os Americanos") pareceu a alguns oferecer uma face "virtuosa" dos EUA, por advertir nações de fora do hemisfério de que não deviam se imiscuir nas questões do continente.

Os latino-americanos logo perceberiam que se buscava apenas atender às próprias ambições dos EUA, cuja atenção voltava-se para Cuba e Porto Rico já em 1824. O então secretário de Estado John Quincy Adams, depois presidente (1825-1829), avisou Simón Bolívar de que a doutrina não autorizava "os fracos a serem insolentes com os fortes", motivo pelo qual devia ficar longe de Cuba e Porto Rico.

Ao preparar a I Conferência Pan-Americana, boicotada por Washington, Bolívar já não tinha ilusões: "Os EUA parecem destinados pela Providência a espalhar a miséria em nome da liberdade", disse em 1829. De fato, a truculência britânica nas Malvinas, Honduras, Guatemala fora ignorada, enquanto os EUA tomavam o Texas e a Califórnia do México, depois invadido, e separavam o Panamá da Colômbia, além de outras intervenções.

Cobiçada desde 1824, quase comprada por US$100 milhões em 1848, Cuba entrava ainda no contexto dos 10 anos de oposição dos EUA à federação centro-americana. Ante a iminente vitória de Cuba sobre a Espanha (e a esperada conquista da independência), as cadeias de jornais Hearst e Pulitzer inventaram a "esplêndida guerrinha" de Ted Roosevelt e seus Rough Riders, retratados como heróis.

A fala macia e o porrete de Ted

Porto Rico foi anexada como o Texas. Cuba resistiu. Acabou sob controle, com a alegação dos EUA de que tinham ajudado a guerra da independência. De 1898 em diante o Caribe virou mar territorial americano. Nascia o império colonial, que tinha ainda Filipinas e Guam, do outro lado do mundo. Festejado como herói, Ted Roosevelt elegeu-se vice do presidente William McKinley no ano seguinte, 1900.

A Emenda Teller, de 1898, negava expressamente qualquer intenção dos EUA de anexar Cuba. E em 1901 o senador Orville H. Platt, a pretexto de prevenir desejos imperiais da Alemanha sobre a ilha, redigiu a emenda à lei de verbas do Exército: proibia Cuba de assinar tratado dando poderes a outro país sobre seus negócios internos, endividar-se ou impedir ali um programa sanitário americano. E mais.

Na Emenda Platt os EUA arrogavam-se o direito de intervir nos assuntos internos de Cuba, a pretexto de "manter a ordem e a independência", podendo comprar ou arrendar áreas para instalar estações navais ou carboníferas. A principal delas era a baía de Guantánamo. No mesmo ano, Cuba foi forçada a incluir a emenda na sua Constituição e a assinar tratado assegurando o poder dos EUA sobre a área.

Obviamente os EUA - já sob Roosevelt, presidente a partir de 1901 devido ao assassinato de McKinley - deitaram e rolaram. Já em 1906 mandaram-se tropas, "a convite", para sufocar revolta e "restaurar a ordem". Enviavam navios de guerra, negavam reconhecimento de regimes, etc. Só em 1934 revogou-se afinal a Emenda Platt, graças à política da Boa Vizinhança. Mas não o arrendamento de Guantánamo.

Caloteiro e péssimo inquilino

A manutenção de Guantánamo, antes de virar prisão, já se elevava, por ano, a US$ 36 milhões. Servia para provocar Cuba, que repudia a transação ilegítima e imoral. O aluguel é o sonho de todo inquilino: fixado pelo próprio, em 90 anos (de 1903 a 1993) subiu apenas de US$ 2 mil para US$ 4.085. Nessa proporção, deve estar hoje nuns US$ 4.200, o que mal paga apartamento de dois quartos em Manhattan.

Arrogante e prepotente, o inquilino sempre impôs sua vontade como valentão de rua. Caloteiro, já que só paga o que quer, ainda controla a área e hostiliza o dono légitimo da propriedade. Cuba, ao contrário, comporta-se como o senhorio ideal: desde que Fidel Castro chegou ao poder, sequer desconta os cheques do aluguel. Teme que isso possa legitimar a indecência histórica imposta pelos EUA.

Há 16 anos, quando Bill Clinton chegou à Casa Branca, o escritor Tom Miller, autor do livro Trading With the Enemy: A Yankee Travels through Castro's Cuba, recordou no New York Times a história vergonhosa de Guantánamo - rebatizada no Pentágono, amante de sopa de letras, como Gitmo. Não se imaginava que ainda viria vergonha maior - a prisão-centro de torturas, obra de Bush II em 2001.

Antes de Fidel, a área pode ter sido a base ideal para o lazer de militares amantes de prostíbulos, cassinos e consumo de drogas - cortesia de gangsters como Meyer Lansky, à sombra dos ditadores apadrinhados em Washington. Talvez haja em Miami quem sonhe com a volta aos velhos tempos. Mas Obama, mesmo vencedor da Flórida, pode fazer a coisa certa: acabar com essa indecência de 110 anos.

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